quarta-feira, 31 de maio de 2017

Contos de alfarrábios

Futucando o meu e-mail secundário, quase abandonado, encontrei um arquivo com contos que escrevi não lembro quando, mas tem um tempinho. Portanto, vou aos poucos postando alguns aqui pros meus 6 leitores apreciarem e comentarem:


Josué

Josué mora numa casa simples. Dois pequenos cômodos, num deles uma cama de solteiro, um criado mudo formado por três tijolos que servem como base, e uma ripa quadrada de madeira sustentando um abajur bege usado. No outro cômodo, jornais velhos jogados num canto, e num outro canto livros de Edgar Alan Poe, aos montes, empilhados, inclusive edições repetidas. Acorda com o cantar dos galos dos vizinhos. Cinco horas ele já está de pé, se olha no espelho do banheiro, olhos pequenos e nariz adunco. Passa devagar suas mãos calejadas e grossas no rosto fino de pele seca, marcado pelo sol, pela cachaça e pela solidão. Cinquenta anos com cara de setenta. Faz sua assepsia geral, abre a Bíblia em qualquer página, na sorte, a que abrir está bom, não escolhe o que lê, dá uma lida rápida, e imagina sempre que a leitura matinal da Bíblia é uma previsão de como será o dia que está apenas começando. Religiosamente como faz todos os dias da semana, excluindo sábados e domingos que não é dia de morrer, Josué toma o seu café da manhã às cinco e meia e sai de casa para trabalhar. Café puro sem açúcar, pão dormido. Passa de leve a manteiga para não desperdiçar nada, é uma passada bem de leve mesmo, apenas para sentir um pouquinho do gosto. A tigela de manteiga já durava dois meses, a meta era que durasse pelo menos mais dois meses, e nem na metade ela tinha chegado. Café da manhã encerrado. Sai de casa em direção ao ponto de ônibus. No subúrbio tem dessas coisas, o ônibus passa de meia em meia hora. Fez sinal, subiu, pagou a passagem e sentou. Mais uma hora de viagem. 

Na entrada do cemitério, pede licença com a mente, a quem toma conta daqui, seja lá quem for, era esse o ritual, tinha que pedir licença para adentrar ali, tantas almas presentes. Vai no banheiro, troca de roupa, coloca a sua camisa azul, seu óculos de grau pendurado no pescoço e pega a planilha com os enterros marcados do dia. Florisberta Augusta das Neves, capela 1 (Cícero); Raimundo Deodato Carvalho, capela 2 (Cícero); xxxxxxxxx, capela 3; João Carlos Hatman, capela 4 (Josué). João Carlos Hatman, o homem tem sobrenome de gringo, deve ser inglês, deve ser alemão, ou será americano como Edgar Alan Poe?, será que era alcoólatra como ele? Chegou na capela, com o corpo do homem conduzido pela maca, estava vestido de terno preto, gravata preta, rosto de velho, rico, com poucas marcas, papas no pescoço, devia ter uns oitenta e tantos anos, não morreu atropelado e nem foi assalto, deve ter sido de morte morrida e não de morte matada. Tinha o rosto sereno, parecia que esboçava um sorriso maroto, como quem aproveitou bastante a vida que lhe foi dada. Josué verificou o enfeite de flores do caixão, pegou todas as coroas enviadas ao morto, colocou tudo no devido lugar e ficou do lado de fora da capela, como sempre ficava, esperando algum chamado do padre. Entrou na cantina e leu um pouco do jornal.

Hora do enterro chegando, o padre estava acabando a cerimônia de fechamento do caixão. O morto era importante, pessoas bem vestidas, todos os homens de terno, as mulheres de vestido, adolescentes de calças compridas e camisas sociais, óculos escuros em profusão. Mais próximos do caixão, duas moças novas, deviam ter cerca de vinte anos, bonitas, ao lado um rapaz novo, mais novo que elas, sério, como que tentando conter as lágrimas que enchiam seus olhos grandes e azuis. O defunto era viúvo, não tinha nenhuma senhora sentada aos prantos, apenas uma senhoria muita velha, parecia de vidro, de tão frágil que era o seu corpo, noventa anos talvez. Olhava o enterro e não entendia muito bem o que se passava, estava ali mas não estava. Minha filha, quem morreu?, perguntou para a acompanhante. Foi o Seu João Carlos. João Carlos? Quem é ele? É seu filho, seu filho João Carlos. Ah tá. O João Carlos, meu filho, sei. Mas ele morreu de quê? Foi enfarto, Dona Cândida. Ah, enfarto, isso é grave, né?

Em nome do pai, do filho e do espírito santo. Amém. Josué pede licença. Silêncio. Aproxima-se do caixão, pega a tampa e ajeita para que os parafusos fiquem exatamente na mesma direção dos buracos por onde eles serão atarraxados. Aperta todos com força, e sai de cena para que os parentes e amigos carreguem-no até a maca que leva ao túmulo. Chegam ao jazigo, tiram o caixão da maca, colocam ao lado do túmulo, ele vai descendo com as cordas grossas que seguram os caixões, as cordas vão desenrolando vagarosamente até que o caixão chegue lá embaixo. Choros, flores são jogadas por alguns presentes, o rapaz novo dos olhos grandes e azuis não consegue conter mais as lágrimas e desaba em prantos, como uma criança. Adeus pai! Aquela cena não comovia mais Josué, acostumado com os enterros de bacanas, de pobres, de velhos, de novos, para ele era apenas mais um.

Sua vida era enterrar os mortos, coveiro, profissão que surgiu por acaso, aprendeu a viver com o mínimo necessário para sua sobrevivência. Fugiu de casa com dezessete anos de idade, órfão de mãe, não aturava mais os porres e as porradas dadas pelo seu pai, eram surras feitas a base de cintos grossos de couro, daqueles marrons, com furos grandes, fivela grande. Seu pai chegava bêbado em casa, Josué se trancava no quarto, nunca fez nada de mal ao pai, nunca levantou a voz para o pai, não entendia porque ele fazia aquilo. Num dia Josué decidiu enfrentá-lo. Sentado na sala, assistindo tevê, deixou uma faca de cozinha de cabo branco atrás do sofá, daquelas que cortam bailando as carnes duras. Seu pai chegou, abriu a porta, olhou para ele, fechou a porta, trincou os dentes, pegou Josué pelos ombros, levantou-o do sofá, foi apenas uma facada nas costas, a faca traspassou o corpo aparecendo a ponta no peito dele, foi quando Josué teve a certeza de que seu pai iria morrer, era questão de minutos. O homem largou seus ombros, dobrou os joelhos, despencou de costas no chão, tremeu por alguns segundos e ficou estático, de olhos abertos. Finalmente o martírio tinha acabado. Josué pegou sua trouxa e foi viver a vida.

O enterro do gringo já tinha terminado. Josué pega a condução, chega em casa, toma banho de uma hora. Achava desagradável chegar em casa com cheiro de defunto, com o cheiro da morte, cheiro que ele bem conhecia. Não tinha o instinto assassino e frio do matador de aluguel, aceitava sua vida monocórdia com resignação. Tinha alergia a desodorante, gastava vidros e mais vidros de colônia, passava colônia nas axilas, no corpo todo, gostava de sair do banho e encher o peito de colônia, respirava fundo aquele odor agradável, fazia-o esquecer de sua labuta mórbida, quem quer namorar um coveiro?

Era quase meia-noite, e Josué ouve batidas na porta de sua casa, eram batidas fracas mas pertinentes. Levanta da cama e abre a porta. Um menino magro, baixo, aparentando dezesseis, dezessete anos. Moço, posso dormir aqui hoje? Josué não entende nada, ainda meio sonolento, diz para o menino entrar. Quer tomar um copo de leite? Quero, sim senhor. Vai na cozinha e apanha o copo de leite. O que está fazendo a essa hora na rua, você não tem pai, onde está sua mãe? Queimaram nossa casa, uns moços bandidos queriam que o meu pai desse a casa da gente para eles, acho que queriam usar para ver quem chega e quem sai da favela, meu pai não quis, disse que não saia de casa, minha mãe também não, eles falaram que se não saíssem que eles iam queimar a casa e queimar eles juntos. Fiquei escutando a conversa escondido atrás da parede da cozinha, ouvi uns tiros e depois vi eles colocando gasolina pela casa, foi aí que saí e não voltei mais. Qual é seu nome, menino? Meu nome é Josué. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

As sete lágrimas de um Preto-Velho

Num cantinho de um terreiro, sentado num banquinho, pitando o seu cachimbo, um triste preto-velho chorava. De seus olhos molhados, esquisit...